domingo, 29 de dezembro de 2019

Farias, homem definido em tranquilidade, repetia seus dias em iguais.
De manhã, acordava sempre reflexivo, não tirava os pés da cama sem antes rezar no mínimo um Pai Nosso, três Ave-Marias e uma Salve Rainha, achava que se não o fizesse Deus iria castigá-lo, e como era por demais metódico não falhava em suas metas (sempre iguais) diárias. Tomava café da manhã sempre no mesmo lugar na mesa, com a mesma xícara, e sempre pondo uma medida exata, duas colheres de leite, uma de açúcar, e quatro dedos de café, girando cinco vezes no sentindo horário, em uma espécie de oração. Enquanto tomava café, olhava pela janela e pensava em muitas coisas aleatórias, de coisas miudas como mudar o vaso da planta assim que chegasse do trabalho, a seu discurso pelas classes minoritárias quando se tornasse presidente do Brasil; no final das contas, Farias terminava o dia sem realizar nenhuma das duas coisas, e seus devaneios matutinos sempre custavam-lhes atrasos. Fisicamente Farias não era bonito nem feio, ficava entremeios, no pêndulo de bonito demais pra ser feio e feio demais pra ser bonito, então acabava não sendo nada, talvez nada fosse uma palavra que o descrevesse, pensava isso nos momentos de solidão. Tinha um cachorro e um gato que amavam-no fielmente, aos quais se prontificavam a esperá-lo, todos os dias, retornar do trabalhar. Após sua chegada, Farias almoçava sempre metodicamente, e dormia por duas/três horas no período da tarde, nunca acordou para além do horário que traçava mentalmente, se tinha algo que sabia fazer era cumprir regras. Ao acordar pegava um livro para ler, ficava se imaginando naquelas páginas amareladas dos livros que comprava, sempre que possível na versão de bolso, quando sobrava mês e acabava a miséria que recebia. Depois de se imaginar como o personagem principal de qualquer coisa que lia, voltava para a realidade e ía à padaria comprar os pães que lhes eram merenda da tarde. Se escrever sobre este homem já é mórbido, imagine quanto que deveria ser desgastante e mui chato viver sua vida? Foi por isso resolvi investigá-lo, pois muito me intriga essa figura demasiado normal, sobrava-lhe normalidade e isso não era normal... Como que alguém poderia viver tão tranquilamente esses dias repetidos? Deveria de haver algo que lhe mantinha são, e tenho certeza que não era seu trabalho de merda como professor do Ensino Médio, muito menos sua maneira ridícula de pôr a mesma medida de café todas as manhãs, de todos os dias, sem dá férias, recesso, nem feriados para falhar na droga daquela medida patética. Enfim, o que quer que seja, eu estava obstinada a descobrir o que matinha aquele homem vivo.
As siglas do meu nome são A. F. S. C., tenho 14 anos e não adianta de nada você se espantar com minha pouca idade, por isso nem vou tratar desse detalhe, o foco é a investigação desse homem, ao qual forjei e forcei um "Tome mais cuidado da próxima vez", pois esbarrei em sua figura monótona e pacata, e para ficar bem clichê derramei algo em sua camisa branca, muito ciente de que tinha umas sete daquelas, todas iguais, como tudo em sua vida. Essa não era a primeira vez que eu invadia sua vida para testá-lo, para força-lo a falar, a transgredir, o que quer que seja da sua vida medíocre e estranha. Toda aquela sutileza em olhar as coisas e as pessoas, toda sua despreocupação e tranquilidade me agoniavam, sim, eu estava completamente incomodada com sua existência! Por mim, ou ele me diria todas suas verdades e desvendaria seus mistérios, ou poderia morrer, e enterrar consigo seus segredos. Mas eu não era alguém que desistia fácil, então eu tinha de continuar com sagacidade, precisava manter a calma, do contrário não iria tirar nada daquele ser absolutamente resoluto em nada declarar. Ele não era meu professor, e eu também não estava apaixonada por ele, nada de contos de fadas, Farias só fazia parte de minha recém descoberta habilidade em desvendar mistérios.

***

Nolite te bastardes carborundorum

Essa era a frase título do capítulo de um livro que lia, ao qual parecia meio estranho, como sua indecente tranquilidade. O que forçava Farias a ser daquela maneira? Quem o mantinha cativo? Será que seus próprios pensamentos? Por que Farias nunca deixava a barba crescer e sempre cortava o cabelo com o mesmo ridículo corte, sempre de dois em dois meses? Ele me consumia sem ao menos saber de mim, dos meus anseios, dos meus medos, e muito menos sem saber que se tornara meu objeto de estudo, minha mais nova investigação, mui meticulosa e profunda, eu o seguia fielmente, na busca de verdades.
O ano começou e aquela figura inofensiva tornou-se o meu professor, foi aí que resolvi mudar de estratégia e comecei a deixar entre suas coisas cartas anônimas, minha intenção era despertar em Farias algum tipo de paixão, não que eu sentisse, eu apenas imitava tudo o que via e ouvia nas conversas de minhas amigas. De início, eu apenas declarava meu amor e admiração pela sua figura pacata e serena (tudo forjado obviamente, pois aquelas eram suas características que eu mais odiava), porém, após algum tempo, decidi colocar no final da última carta um lugar estratégico no qual ele deveria deixar sua correspondência como resposta, para oficialmente trocarmos cartas. Era um ótimo plano para eu invadi-lo ainda mais e descobrir tudo o que precisava de uma vez por todas, o único problema é que Farias nunca deixou uma carta como resposta, então parei de escrevê-las.
Na semana seguinte, Farias faltou a todas suas aulas na escola, e é óbvio que fui a primeira a buscar informações do que lhe havia acontecido, tudo o que ouvi da secretária foi que, devido aos problemas de saúde de sua mãe, teve de voltar para sua cidade natal, desse modo, decidiu sair da escola, mas que havia deixado uma professora que o substituiria. Aquelas palavras caíram como um balde de água fria em mim, aquele desalmado tinha ido embora covardemente sem ao menos me dizer suas verdades! Fiquei absorta em pensamentos, daquele momento em diante não conseguia mais prestar atenção em nada do que estava a minha volta, tudo o que pensava era em como iria continuar sem saber o que se sucederia na vida daquela enigmática figura, para mim. Resolvi ir para casa mais cedo, mas antes, parei na igreja que ficava ali pertinho, sentei numa das sombras do jardim e fiquei observando monotonamente as pessoas entrarem e saírem, foi aí que mergulhei profundamente no meu fracasso, sentindo uma lágrima arranhar minhas bochechas, era a confirmação de que eu nunca mais iria descobrir nada sobre aquele homem, sobre aquela figura patética. Não havia mais mistérios, não havia o que descobrir, não havia mais verdades a serem ditas, aquela tinha sido a primeira e única vez que eu havia amado, em toda minha vida.

Nunca foi sobre você, o foco era eu.

***

Após escrever essa última frase fechei meu caderno e continuei a olhar a figura de Farias, enquanto ele dava aula, eu estava feliz, pois havia acado de escrever mais uma de minhas medíocres (es)histórias.

- Roberta Laíne.


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