"Assim como um gato não sabe que é um gato, eu
não penso se estou ou não fazendo literatura; mas o trabalho vai sendo feito,
sem pretensão".
Em um café...
— Olá, meu bem! Sente-se... Obrigada por vir. Chamei-lhe com certa urgência, pois acabo de terminar a crônica que havia lhe falado, aquela que você tanto queria ler. Este da imagem é Raul, o personagem principal.
— Camila, este é Fernando Sabino!
— Sim, eu sei. É que eu estava produzindo algumas provas e me deparei com uma fotografia dele, foi daí minha inspiração, fiquei por minutos olhando-a, até ser transportada para o lugar em que ele estava e acaba que senti, senti tudo o que ela dizia... Apenas sente-se e escute, irei lê-la para você.
Parte 1
Era
19 de março de 1950, quando vi Raul pela primeira vez na Coffee and tea, minha
cafeteria favorita. Raul estava sentado em uma das últimas mesas do local, em
uma parte não tão luminosa, muito provavelmente não queria ser notado, afinal,
todos que sentam naquela mesa estão fadados ao título da invisibilidade. Inclusive,
por incontáveis vezes, já me pus a sentar naquele mesmo lugar, em dias absurdamente
caóticos de minha vida, em que tudo o que eu mais queria era sumir. E sumia.
Raul estava lendo um jornal, totalmente absorto nas palavras, mantinha as pernas
cruzadas, balançando-as num movimento contínuo de cá para lá. Entre os dedos havia
preso um cigarro, o qual tragava sem dar muita atenção ao movimento. Dificilmente
iria notar a minha presença, que, de certo, era incômoda, pois meus olhos o
observavam com certo vigor. Não sei o porquê de aquele homem ter chamado minha
atenção, mas fiquei hipnotizada com sua figura ali, absorta, compenetrado na
leitura daquele jornal. Anos de Coffee and tea e nunca havia sido tomada pela
presença de ninguém. E sim, Raul era um homem bonito, mas sei que não foi isso
o que me chamou a atenção, havia algum mistério fantástico naquele ser, não sei
explicar, mas eu sentia algo diferente, intrigante, espiritual, algo mal
resolvido, talvez fosse casado e vivesse um romance proibido; talvez tenha sido
coautor de um crime bárbaro e nunca contribuiu para solucionar a coisa toda; ou
talvez, e muito provável, seja tudo coisa da minha cabeça e, no final das
contas, Raul não se passasse de uma pessoa normal, que trabalha 10 horas por
dia, seu dinheiro dá apenas para pagar as contas, e estava fadado a morrer sem
ter realizado metade dos seus sonhos. De qualquer forma, eu precisava descobrir
o mistério que envolvia aquela figura enigmática, que passou a frequentar minha
cafeteria favorita.
***
No
dia seguinte, no trabalho, comecei a datilografar uma pilha de documentos que
meu chefe havia solicitado, porém, a imagem de Raul não saía de minha cabeça,
acompanhada de perguntas sem respostas: Quem era aquele homem? Por que diabos
eu estava interessada em saber ao seu respeito? Raul morava na cidade ou era
apenas um viajante? Era solteiro ou casado? Tinha filhos? Quantos anos Raul
tinha?
***
No
mesmo dia, ao sair do trabalho, fui à Coffee and tea como de costume, só que
agora eu não estava apenas em busca do melhor café da cidade, eu tinha comigo outro
objetivo. Ao chegar lá, meus olhos percorreram toda a cafeteria à procura de
Raul, passeando por todas as mesas, visualizando cada pessoa que ali estava. Contudo
não o vi, meu mais novo mistério não estava lá, o que obviamente deixou-me
frustrada. Enquanto tomava minha xícara de café, tamborilando os dedos no
balcão, Raul se posicionou ao meu lado, pedindo um expresso meio amargo para a
atendente. Naquele momento, meu corpo congelou, fui tomada por uma onda de ar
frio, a qual me fez lembrar do último inverno severo que enfrentamos. Paralisada,
eu podia ouvir as batidas descompassadas do meu coração. O mais interessante é
que Raul nem ao menos olhou para mim, não direcionou-me sequer um mísero
cumprimento, parecia que as pessoas ao seu redor não existiam, seu olhar era
firme em direção alguma, altivo, um perfeito ditador. Ao pegar o expresso,
encaminhou-se para a mesma mesa, sentou-se, cruzou as pernas, e abriu aquele
maldito jornal, ficando ainda mais alheio as pessoas.
***
Passei
a odiar Raul, todo aquela indiferença feriu algo dentro de mim, aquele homem-mistério
não tinha direito algum de me ignorar daquela maneira.
***
Os
dias se passaram e continuei a ver Raul na Coffee and tea, mas, agora, com o
orgulho ferido, passei a não dar importância a sua presença. Enquanto servia
meu expresso, Nina maneou a cabeça em direção a Raul, indagando-me se eu conhecia
o recém-chegado que veio morar na cidade. Olhei fingindo desinteresse e balancei
a cabeça em sinal de negação, porém sabia que era uma ótima oportunidade para
saber algo sobre ele, afinal, Nina adorava coletar histórias para depois
repassá-las com grande facilidade. Então perguntei a ela o que se sabia a seu
respeito, ao que Nina respondeu um “nada”, sem grande entusiasmo. Bem, ao menos
agora eu sabia que Raul não era um mistério apenas para mim, pois já havia
outras pessoas tentando coletar informações sobre sua vida. Segundos depois,
Nina arregala os olhos, empalidecendo a face, Raul estava posicionado ao seu
lado, com um olhar incógnito lançado em minha direção: “Posso sentar-me?”,
indagou-me de modo firme e altivo, enquanto Nina se retirava assustada. Meu
coração respondeu primeiro, saltando o peito. Em seguida fiquei sem voz, então
tive que responde-lo fazendo menção com a cabeça. Raul sentou-se de frente para
mim e eu senti pela segunda vez aquela onda de ar frio, como se, naquele
momento, eu tivesse sido teletransportada para o ártico: “Você acha que eu não
percebi seus olhares direcionados a mim?”. Fiquei tonta, quis vomitar, juro que
desejei que um carro desgovernado invadisse a Coffee and tea naquele instante e
causasse um grande estrago em sua estrutura física. Inclusive, tenho certeza
que se passasse por cima de mim muito provavelmente eu não me sentiria tão
esmagada como me sentia naquele momento: Desculpe-me, deve haver algum engano.
Foi o que eu disse antes de fugir.
***
“Desculpe-me,
deve haver algum engano”. Enquanto andava a passos largos, distanciando-me da
cafeteria, fiquei repetindo minha gloriosa frase patética e questionando-me como
pude ser tão burra e, ao mesmo tempo, covarde. Por que diabos eu levantei daquela
maldita cadeira, deixando Raul sozinho, após soltar minha mais nova e medíocre
resolução!?. “Desculpe-me, deve haver algum engano”, ora engano... não havia
engano algum! E agora minha cabeça estava a ponto de explodir, com o turbilhão
de pensamentos que começaram a bombardeá-la, como se eu estivesse no cume da
Primeira Guerra Mundial.
***
Em
casa, corri para o meu quarto e me pus debaixo das cobertas, buscando
proteger-me do meu próprio corpo, que ainda estava em estado de alerta. A
sensação era de como se alguém tivesse tentado invadi-lo e, após a tentativa,
uma porção de luzes vermelhas houvesse disparado, sinalizando a violação. Fechei
os olhos e uma nova avalanche de pensamentos aleatórios inundaram a minha mente.
Lembrei de Jack, meu cachorro que havia morrido envenenado há 10 anos. Lembrei
do meu primeiro beijo, na escola, com um garoto franzino, que tinha cabelos
castanhos sujos e desgrenhados, e o quão foi horrível, pois não se assemelhou
em absolutamente nada de como eu imaginava que seria. Lembrei de tia Dora, que
morreu sem conseguir realizar seu sonho de ir a Paris e ser fotografada
apontando para a Torre Eiffel.
***
No
dia seguinte, fui ao trabalho com uma sensação horrível de ressaca, estava
pesada e zonza, como se tivesse bebido uma garrafa de vinho sozinha na noite
anterior. Enquanto datilografava o restante da pilha de documentos que estava
sobre a minha mesa, meu chefe saiu de sua sala e convidou-me a acompanhá-lo,
para que eu pudesse conhecer o mais novo membro e sócio da empresa. Um convite
pavoroso por sinal, doutor Carlos não poderia ter escolhido um dia pior para eu
dar as boas-vindas a alguém. Eu estava simplesmente destruída e em péssimas
condições, meu semblante exalava minha falsa ressaca, meu corpo parecia
mórbido, como se eu tivesse acabado de sair de um clássico filme de terror: “Apresento-lhe
Raul, nosso mais novo sócio!”. Dessa vez não consegui me segurar, uma onda gigante
de ar frio percorreu todo o meu corpo, forçando-me a correr até a lixeira e
vomitar a falsa bebida da noite anterior. Naquele instante, almejei, mais do
que nunca, estar enterrada a sete palmos sob a terra, imóvel, imperturbável, descansando
em paz. Após recuperar-me, vi que doutor Carlos estava confuso, sem entender o
que havia acontecido comigo, enquanto Raul permanecia austero. Havia naquele
homem um muro intransponível, uma barreira inviolável em suas expressões. Se estávamos
em uma guerra, definitivamente Raul havia triunfado. Pedi perdão aos
cavalheiros e disse que havia passado mal na noite anterior, muito
provavelmente por conta de algo que havia comido. Doutor Carlos mostrou-se
preocupado e questionou-me se não era melhor eu voltar para casa para tirar o
dia de folga, ao que recusei, garantindo-lhe que já estava bem, só precisava de
uns minutos para me recompor.
***
Enquanto
lavava o meu rosto no banheiro, percebi que agora sabia duas informações sobre
Raul:
1. Ele
era advogado.
2. Eu seria subordinada a ele.
Continua...
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