domingo, 18 de agosto de 2019

É um texto sobre as faltas que inventamos

Por que sempre falta? O ajuste no cabelo, o dinheiro no final do mês, os fios da sobrancelha que cresce e precisa tirar, a roupa amarrotada que deveríamos passar antes de sair, os quilos a menos pra entrar na calça da vitrine - no manequim, os olhos azuis da modelo da capa de revista, a paciência em ter que ir ao médico cuidar da saúde, o retoque de tinta na parede do quarto que infiltrou no inverno, aquela viagem que deveria ter feito antes de conhecê-lo, o mestrado que deveria ter cursado antes de ser mãe, as unhas grandes pra pintar de preto, a blusa cara que você experimentou, mas teve que deixar na loja, o guarda-chuva que preferiu deixar em casa por acreditar que era apenas uma nuvem passageira, o livro que ficou marcado na página 80, a mensagem que escrevi no bloco de notas e não tive coragem de enviar, a torneira que quebrou mês passado e agora pinga a todo momento, o sapato que não coube no pé, mas que você queria, a todo custo, levar, o beijo que você preferiu não dá para não se machucar futuramente, o cacto que você não tirou do sol e morreu na chuva, a senhora que você deixou ficar em pé na missa e depois voltou pra casa se sentindo mal, pois não cedeu o lugar, o lixo que você não pôs pra fora e o serviço de limpeza da cidade não levou, a paciência que faltou, para não ter avançado o sinal e levar uma multa do guarda de trânsito, o blues que nunca mais tocou, o seu João que morreu e parou de contar piadas sobre portugueses, o padeiro antigo que fazia pães deliciosos, o lado do brinco favorito que você perdeu na festa de ontem a noite, a tv que você esqueceu de desligar antes de dormir, o dinheiro que não deu pra pagar a conta de luz, os olhos da moça que passou por você e nunca mais você a viu, e o final desse poema, que vai faltar, porque por mais que eu finalize, vai faltar alguma vírgula ou reticências, alguém em algum lugar ou momento, acrescentaria algo, uma janela que faltou fechar antes da chuva, talvez, porque sobre nossas faltas, das reais as inventadas, elas são sempre infinitas.

- Roberta Laíne. 

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